quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A TV na Sala de Aula - Reflexões sobre oficinas de educação midiática realizadas em escolas públicas de Belo Horizonte (1996-1998)

Bráulio de Britto Neves e Rafaela Lima1

Neste texto apresentaremos algumas reflexões desenvolvidas ao longo de dois anos de atuação do Centro de Mídias Comunitárias de Belo Horizonte2 na implantação de oficinas de educação midiática junto a alunos e professores de escolas públicas de BH.

O Centro de Mídias Comunitárias propõe a incorporação, no contexto escolar, da prática experimental de expressão em mídia eletrônica (vídeo e TV). Tal proposta parte do reconhecimento da importância dos meios de comunicação na vida dos educandos e educadores, uma vez que a comunicação de massa constitui um elemento central da sociabilidade contemporânea. A experiência social de percepção e compartilhamento de um mundo comum, na atualidade, encontra-se fortemente dependente da mediação dos meios de comunicação, sobretudo da TV.

O Centro promove, desde agosto de 96, o projeto TV Sala de Aula, que consiste na realização de oficinas de educação midiática - vídeo e TV em escolas públicas. Já foram realizadas oficinas para os seguintes públicos: alunos de 5ª a 8ª séries da Escola Municipal Maria Mazarello (Bairro Nazaré - agosto de 96 a junho de 97, quatro oficinas), professores da rede pública municipal de BH (na Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, dezembro de 97, uma oficina), e, finalmente, alunos da 7ª série do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais (uma oficina, em andamento desde março de 98). Cada oficina envolve entre 20 e 30 alunos e tem duração entre 20 e 40 horas.

As oficinas de educação midiática - vídeo e TV extrapolam o tradicional uso de produtos audiovisuais na sala de aula - como recurso didático, mero acessório em palestras e aulas -, e buscam promover experiências onde a comunidade da escola se aproprie da TV, recriando-a.

1 Sócio-fundadores da Associação Imagem Comunitária (BH), produtores e pesquisadores da área de comunicação comunitária. Texto realizado com a colaboração, através de relatórios de experiência, das equipes das oficinas: Ana Tereza Melo Brandão, Janaína Moreira do Patrocínio, Juliana de Melo Leonel e Aléxia Costa elo. M
2 O Centro de Mídias Comunitárias é uma iniciativa da Associação Imagem Comunitária (ONG belorizontina voltada à pesquisa e experimentação na área de comunicação comunitária) e Departamento de Comunicação Social / Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais. O Centro deverá contar ainda com a parceria da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (convênio em fase de negociação). Sua equipe desenvolve experimentos de mídias comunitárias em Belo Horizonte desde 1993, com destaque para os projetos "TV Sala de Espera", TV Comunitária realizada junto a comunidades da região nordeste da cidade, e "TV Sala de Aula".

Cada oficina acontece como um vídeo-processo: os participantes são convidados a eleger questões que consideram importantes e trabalhá-las sob a forma de um programa videográfico. Ao longo da produção deste programa, os elementos constitutivos do processo de produção de vídeo/TV vão sendo apresentados aos alunos. A oficina envolve ainda uma série de jogos e brincadeiras que convidam os participantes à desmistificação do aparato tecnológico e ilustraram as informações técnicas básicas.
Apresentamos, a seguir, algumas reflexões advindas da prática das oficinas realizadas com crianças e adolescentes.

O fascínio com o equipamento:

A câmera de vídeo, videocassete e televisor representam emblemas da sociedade industrial, da modernidade e do mercado de consumo3. Sua posse, o acesso a tais objetos, a capacidade para sua utilização constituem símbolos de distinção social. Além disso, a auto-imagem tecnicamente mediatizada representa a possibilidade de uma visibilidade social ampla, de um reconhecimento público associado às "estrelas" da comunicação comercial massiva.

O primeiro elemento trabalhado nas oficinas é exatamente este fascínio: é preciso esgotar o deslumbramento dos alunos (e também dos professores) diante do equipamento, instrumentalizando este interesse para uma finalidade expressiva. Assim, no primeiro dia de oficina todos têm contato exaustivo com câmeras e monitores, em brincadeiras coletivas.

As oficinas envolvem ainda elementos lúdicos que destacam aspectos parciais da câmera. Por exemplo, para experiências com enquadramentos, quadradinhos de papelão; para microfones, um estetoscópio improvisado.

A partir daí, é possível deslocar o foco de interesse: do instrumento de mediação para o da mediação propriamente dita, ou seja, do objeto câmera para a câmera como veículo para um enunciado que exige uma construção meticulosa (a produção).

Exposição e prática:

As oficinas associam exposições teóricas à demonstração prática com os equipamentos, o que propicia um diálogo constante com os alunos. Dispondo de tempo e de equipamento mínimo, são as próprias crianças e adolescentes que impõem suas dúvidas e

3Cf. LEAL, Ondina Fachel. A Leitura Social da Novela das Oito. Petrópolis, Vozes: 1986.


curiosidades, muitas vezes inesperadas e de explicação complexa. Neste sentido, exige-se um conhecimento tanto técnico quanto expressivo grande por parte dos propositores das oficinas.

Enfrentamos um problema de descontinuidade devido a exiguidade de tempo4, dificultando a reflexão sobre os experimentos. Para futuras experiências, o tempo de avaliação final deverá ser garantido, na medida em que desta forma há uma socialização das experiências particulares, assim como uma generalização dos conhecimentos práticos adquiridos, tornando-os disponíveis para a realização das atividades subseqüentes5.

Professores e alunos, propositores6 e participantes:

Há muitas questões surgidas pela realização de oficinas de expressão em mídias técnicas.

Embora estas mídias (em específico, o vídeo) sejam "fascinantes" e causem um interesse geral entre os professores, são poucos aqueles que concretamente incorporam-nas em seu trabalho. Percebemos a necessidade de investigações mais específicas sobre esta defasagem entre interesse geral e disposição dos professores para ações concretas de uso das mídias na sala de aula. O resultado de tais investigações poderá contribuir para a adoção de estratégias de sensibilização e divulgação da proposta das oficinas de educação midiática.

Um segundo aspecto é o do lugar do professor nas oficinas. Observamos que a presença de um professor da escola, ou no mínimo seu acompanhamento, garantia um compromisso maior dos alunos. Na ausência da figura de autoridade do professor, a atividade da oficina era compreendida na dimensão do tempo recreativo. Isto implicava grandes dificuldades de manter a concentração dos alunos participantes, assim como de garantir a continuidade do trabalho.
Pudemos ainda perceber que, de certa forma, a atividade das oficinas importava a estrutura hierárquica escolar, mas também a subvertia: muito freqüentemente, tanto o

4O problema do tempo das oficinas pode ser remetido à falta de um planejamento mais rigoroso da equipe, mas também indica uma defasagem entre a temporalidade escolar e aquela mais adaptada à rática de oficinas de arte e expressão. p
5Estamos aqui nos referindo à organização do tempo das dinâmicas em: proposição (regras do jogo, divisão do grupo em times, preparação do espaço e do equipamento), prática (os participantes solucionam os problemas de jogo a seu modo) e avaliação (discussão dos resultados, socialização das experiências pessoais, generalização dos conhecimentos locais). Esta divisão deriva-se da proposta metodológica de Viola Spolin para o treinamento em teatro improvisacional (Ref. SPOLIN, V. mprovisação para o Teatro. São Paulo, Perspectiva, 1992.)
I 6"Propositor" é um termo criado por Lygia Clark para substituir a noção de "autor": as obras desta artista plástica eram extremamente desobjeficadas e relacionais, e dependiam fundamentalmente da participação do público. Assim, Clark propõe que não cabe ao artista colocar-se como origem da obra. Transportamos o termo para o trabalho das oficinas com, como veremos, significativas implicações para sua própria concepção.

professor quanto alunos encontram-se na mesma situação de expectativa e desconhecimento em relação à mídia técnica, à oficina, e portanto, em relação a seus propositores.
De certa forma, a concepção e proposição das oficinas tem de dar conta de incorporar e transformar as dicotomias temporais e hierárquicas típicas da escola: professor-aluno, caxias-bagunceiro, aula(sala)-recreio(pátio), uniforme-roupa normal, brincadeira-estudo, obrigação-diversão. Há muitas possibilidades a serem exploradas pela própria instituição do espaço das oficinas de expressão em mídias, já que com ele abre-se um campo de relações que não são mais as das hierarquias escolares.

Independente versus industrial:

Talvez seja esta a maior dificuldade da concepção metodológica das oficinas de mídia: como podem os propositores afastarem-se de seu próprio adestramento técnico? Assim como o tempo e a estrutura de relações interpessoais da escola divergem dos proporcionados pela oficina, também as temporalidades e hierarquias da produção televisiva comercial, dita "industrial", contrastam com as derivadas de um compromisso expressivo. A temporalidade da mídia industrial é marcada pela urgência e pela total priorização do produto final, em detrimento do processo. No caso das oficinas, é o processo que é priorizado - o que não quer dizer que o produto possa ser descartado: é um grande estimulador, assim como representa um marco para os participantes, no sentido de provar sua capacidade.

Reconhecemos a dificuldade de estudantes e profissionais que por longo período buscaram justamente a incorporação dos padrões estabelecidos em adotar uma postura distanciada e crítica. No entanto, isto torna-se extremamente necessário se queremos abrir espaço para a criatividade e não fazer um produto igual ao da televisão comercial, só que pior. A solução mais produtiva parece ter sido a da paródia, em que a os padrões comerciais podem ser incorporados criticamente; além do mais, o humor constitui um grande atrativo para o trabalho, principalmente em se tratando de crianças e adolescentes.

Arte, Política e Educação:

Coligindo estas observações e inferências iniciais, parece-nos possível esboçar algumas hipóteses para orientar o trabalho de oficinas de educação midiática. Nossa reflexão final será conduzida no sentido de detectar e aproveitar as implicações estético-políticas das oficinas para propiciar um processo de comunicação crítica não só em relação às mídias massivas comerciais, mas também as "mídias escolares tradicionais".
I- A formas didáticas mais coerentes com a expressão crítica são aquelas baseadas na ludicidade. O aprendizado da técnica pode deixar de ser um adestramento para tornar-se uma

incorporação interpretativa (criativa) do "artesanato" das mídias técnicas. Manifestações individualistas são minimizadas, pois o sucesso no jogo comunicativo depende do esforço coletivo.

A insegurança, a necessidade de aprovação são desestimulados, pois o propositor apenas propõe a dinâmica, não é o depositário do conhecimento; seu papel é de garantir a organicidade do trabalho como crescente apropriação criativa. Do ponto de vista de oficinas infantis, estes aspectos são amplificados, dado que nesta faixa etária a brincadeira, o jogo, o faz-de-conta constituem-se no principal processo de conhecimento do mundo e construção da identidade.
II- O uso das novas mídias técnicas implica em novas modulações cognitivas, através das quais tornam-se observáveis as implicações cognitivas das mídias precedentes. A prática de fazer vídeo permite reinterpretar a escrita como uma mídia entre as outras, com as quais está em constante conexão. De modo mais geral, a experiência com variadas mediatizações da experiência permitiria a vivência da alteridade, a percepção da existência de inúmeros pontos de vista envolvidos no estabelecimento da realidade (tal como coletivamente construída e compartilhada).
III- O trabalho da oficina é em si a produção de um fenômeno estético. Esta hipótese é conexa à do princípio de construção metodológica lúdica. Neste ponto, é preciso conectar a pesquisa de educação para as mídias a algumas experiências da arte participativa. Esta abordagem do fazer artístico, cujo impulso maior no Brasil foi dado por artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica, abandonou progressivamente a tarefa de produção de objetos de arte duráveis, dirigindo-se cada vez mais para a experiência em ato, para o aspecto relacional do objeto estético.
Se as atividades da oficina forem tratadas na sua autonomia estética, a lógica produtivista da produção comercial não teria como se instalar. Como criação, cada sessão de trabalho singular demandará uma intensa concepção de proposições (dinâmicas, jogos, etc.). Isto implica numa pesquisa inesgotável. Não que em algum momento não se possa editar um manual com "200 jogos de expressão em mídias"; na prática, entretanto, tais "bulas" servirão no máximo como ponto de partida para criação de novas proposições.
IV- As oficinas de expressão constituem um espaço de crítica à mídia comercial massiva e à mídia escolar tradicional. Já vimos como se torna possível realizar concretamente atividades de apropriação crítica da mídia, assim como já nos referimos à necessidade, por parte dos propositores, de distanciar-se criticamente de seu próprio treinamento profissional, marcado por pressupostos tipicamente industriais e comerciais. Nesse aspecto, a organização das oficinas deve obedecer a uma lógica processual, visando a apropriação criativa pelos participantes e também pelos propositores.

Ao observar a importância da participação de professores de outras matérias, podemos perceber que sua situação, próxima a de seus alunos, constitui um campo de práticas onde a assimetria das relações escolares encontra-se suspensa. A oficina institui um momento em que a experiência encontra-se estetizada, e as relações interpessoais (hierárquicas, funcionais) são reconfiguradas: em certos momentos, e em sua função, um dos alunos (o "diretor" ou um "ator") adquire mais autoridade que o professor e mesmo que os propositores da oficina.

V- Expressão artística e ação política. A mídia técnica traz em si a potencialidade da reprodução massiva, que a torna veículo privilegiado tanto de uma expressão original, quanto da ação política (podem coincidir). Através das mídias é que os os objetos se tornam publicamente existentes, possíveis temas de deliberação coletiva.

A ação política necessariamente parte de uma singularidade, individual ou coletiva, cujo gesto é incorporado por coletivos cada vez mais amplos; é frágil, pois não resiste nem à violência nem à dispersão; é imprevisível, pois ao se tornar coletiva, perde qualquer controle ou autoria individual; é irreversível, já que sua ocorrência e disseminação não podem jamais serem revertidos. Efêmera também é a arte, principalmente aquela que se consuma na própria manifestação - dança, música etc. - e obras participativas. Da mesma maneira que as ações políticas dependem da participação coletiva, também as proposições, "jogos ideais"7: seus resultados não são dedutíveis a partir das regras iniciais. Assim como a produção de um enunciado midiático jamais ocorre sem uma participação coletiva.

Os programas realizados nas oficinas trazem marcas de uma criação que é sempre coletiva, expressam diversos olhares sobre o dia-a-dia da escola e seus integrantes. Há, nos cinco programas já realizados, quadros de humor que tratam de problemas graves como briga entre gangues, professores negligentes, alunos maiores que assediam e são violentos com os mais jovens; paródia de novelas e telejornais; dramatização de problemas sociais (como a questão dos sem terra); e momentos de pura brincadeira, sem nenhuma pretensão de "passar uma mensagem". Neste processo, de criação de múltiplas imagens da escola e do cotidiano de seus membros na TV da sala de aula, acreditamos ser possível a construção de um novo olhar - um olhar crítico e participativo - frente às imagens da TV massiva.

7Cf. Deleuze, G. O Jogo Ideal. In. Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 61 e ss. Os jogos ideais têm como objetivo a continuidade do jogo (não a vitória); cada jogada transforma as regras e o espaço de jogo (não se acumulam em ganhos ou perdas).

Um comentário:

Anônimo disse...

Ola grupo de Critica em revista. Bons textos, polêmicos. Gostaria, no entanto, que o blog fosse melhor organizado: quem são os autores, separar os textos anteriores, em arquivo e só manter aberto os novos textos, da turma atual. Fica bem mais fácil para localizar.
Parabens pelo início do trabalho. Aguardamos mais informações.

Carmen

Carmen